Covid chega ao parque do Xingu, em MT
Data de Publicação: 11 de junho de 2020 13:49:00
BEM ESTAR
A Covid-19 chegou ao Parque Indígena do Xingu, em Mato Grosso. Os dois primeiros casos confirmados no território, que abriga 16 povos e cerca de 7 mil indígenas, mobilizaram lideranças, autoridades e especialistas, que querem ampliar medidas de apoio e prevenção. O medo do novo coronavírus já afeta a realização do Kuarup, a grande cerimônia de despedida dos mortos realizada entre junho e julho – são centenas de participantes de diversas etnias.
Na quarta-feira (10), os caciques e líderes do Alto Xingu informaram ao presidente da Associação Terra Indígena do Xingu (Atix), Ianukulá Kaiabi Suiá, que três povos (Kuikuro, Yawalapití e Kamaiurá) já decidiram pelo cancelamento do ritual. O informe ainda apontou que outros grupos devem manter o Kuarup, mas com restrições por conta da Covid-19 (leia mais abaixo). No sábado (6), Ianukulá Kaiabi sugeriu o adiamento do ritual em todas as aldeias.
Os dois primeiros casos da Covid-19 no Parque do Xingu foram confirmados no sábado (6). O cacique da aldeia Sapezal, Vanité, e o filho Adolfo Yarurú testaram positivo para o novo coronavírus, segundo nota emitida pelo Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei-Xingu), em Canarana, a 838 km de Cuiabá. A aldeia Sapezal fica no extremo leste do Parque Indígena e a preocupação aumentou porque, em aldeias próximas, surgiram duas outras suspeitas, que estão sendo monitoradas.
De acordo com o Distrito Sanitário, o cacique e o filho apresentavam um quadro de falta de ar quando foram transferidos para o Hospital Municipal de Querência e de lá para o Hospital Regional de Água Boa. Ambos tiveram alta na terça e retornaram para a aldeia, mas uma criança, neta do cacique Vanité, segue internada em estado grave com suspeita de ter contraído o novo coronavírus e aguarda transferência para Cuiabá. Mutuá Kalapalo, liderança do povo, resumiu: “Todos nós estamos assustados. Nossas famílias estão assustadas”.
O Ministério da Saúde, que divulgou na terça ter contabilizado 82 mortes entre indígenas de todo o Brasil, diz que acompanha o alastramento da doença com preocupação.
"A onda da Covid-19 vai se alastrando. Ela começou na região Norte, pegou na região Nordeste e agora está descendo aqui em direção aos xavantes e ao Xingu" – Robson Santos, secretário Especial de Atenção Indígena do Ministério da Saúde.
"Deus está sendo bom e pelo menos não está sendo tudo de uma vez, e a gente está se antecipando aos problemas para evitar que a disseminação ocorra, ou que, ocorrendo, a gente não tenha óbitos", disse o secretário.
Visitas, exames e interiorização
No domingo pela manhã uma equipe do Dsei Xingu, que já passou pela quarentena, entrou no Parque para visitar as aldeias Sapezal, Curumin, Tanguro e Tangurinho – onde vive o povo Kalapalo – para examinar e fazer testes nos índios que apresentarem sintomas, além de levar orientações às comunidades.
O pedido é para que todos fiquem em suas aldeias. “A movimentação de pessoas entre as aldeias pode espalhar ainda mais o vírus e causar muitas mortes.”
A preocupação se justifica porque a circulação dos índios em cidades vizinhas ao Parque, onde se contaminaram, continua alta. E, com a interiorização do vírus, aumentam os números de casos confirmados da Covid-19 nas cidades do entorno do Parque Indígena do Xingu, como Querência (51 casos, em 10/6) e Canarana (27 casos, em 10/6), portas de entrada do Alto Xingu, área mais ao sul do Parque Indígena do Xingu onde os povos compartilham modo de vida e visão de mundo bastante semelhantes e são falantes do tupi, aruak, karib e a língua isolada trumai. Ali zelam pela natureza e por deuses sobrenaturais.
A região da aldeia Sapezal, onde ocorreram as primeiras confirmações da Covid-19, tangencia o Xingu no extremo leste da Terra Indígena, fica próxima às cidades de Querência e Gaúcha do Norte, e sofre com pressões e ameaças do entorno, como desmatamento e grandes plantios de soja.
'Sabíamos que iria chegar'
Uma cartilha com orientações de prevenção ao coronavírus, feita pela Associação Terra Indígena do Xingu pedindo que os índios permanecessem nas aldeias, pouco adiantou. “É lamentável”, diz Mutuá Kalapalo, em vídeo divulgado em rede social.
“A gente já sabia que um dia ia chegar na nossa terra, agora sei lá... não foi falta de falar, de orientação. O pessoal fica teimoso demais, então acontece”. E mais uma vez ele afirmou que novas conversas serão realizadas com a comunidade “para respeitar o combinado”: ninguém deve sair para a cidade ou aldeias que já tenham pessoas infectadas.
É sempre difícil mantê-los longe das cidades vizinhas, principalmente no caso dos grupos que estão mais próximos delas, onde vão frequentemente fazer compras de gêneros alimentícios, combustível para os barcos e geradores, visitar parentes ou quando se deslocam para outras regiões do país.
Em outro ponto da região, o vai e vem constante à Canarana – uma das principais portas de entrada do Alto Xingu –, continua alto e é também outra fonte de preocupação. Em grupos privados de WhatsApp, antropólogos pediam a todos com contato com os índios xinguanos que enviassem mensagens, vídeos e áudios sobre a gravidade da pandemia e a necessidade de ficar na aldeia.
“Sabemos o quanto na prática isso é difícil, eles estão em risco o tempo todo, estão sempre nas cidades próximas", diz uma professora que trabalha com os índios kalapalo.
Alerta via rádio
No sábado (6), o presidente da Atix, Ianukulá Kaiabi Suiá, enviou uma mensagem pelo rádio para todos os caciques e lideranças. “Infelizmente a Covid-19 entrou no Xingu. Moradores da aldeia Sapezal foram contaminados. Não sabemos se as pessoas contaminadas visitaram outras aldeias do Xingu e espalharam a doença.”
Ianukulá Kaiabi solicitava o “apoio de todos" para isolar as aldeias e não permitir mais a saída das pessoas para as cidades e nem entrada de pessoas sem autorização do Dsei e Funai. "Peço também que procurem não visitar outras aldeias porque não sabemos quem pode estar com a doença.”
Embora alguns grupos estejam fazendo quarenta desde março e sigam firmes no propósito de não deixarem suas aldeias, a preocupação com a chegada iminente da pandemia ao parque levou a um Acordo de Cooperação Técnica e à criação de um Grupo de Trabalho que reúne a Associação Terra Indígena do Xingu, Dsei-Xingu, CR-Funai, Projeto Xingu da Unifesp, Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina e Instituto Socioambiental para enfrentamento da Covid -19 no Território Indígena.
O plano para o enfrentamento da pandemia foi discutido com lideranças e comunidades. Para evitar o deslocamento constante até a cidade, a associação está providenciando cestas básicas, materiais de higiene e pesca – um kit para cada família. Tudo é desinfetado em Canarana antes de entrar nas aldeias.
Uma das ações do grupo é a implantação das chamadas Unidade de Atenção Primária Indígena (UAPI), pequenos postos que serão espalhados por todo o Parque do Xingu, onde os índios podem receber os primeiros atendimentos e fazer o isolamento social.
Dez dessas UAPIs estão sendo estruturadas: quatro delas nos Pólos Base de atendimento que já existem (Leonardo, Diauarum, Wawi, Pavuru), outras três ao sul (Kuikuro, Waurá, Kalapalo), uma ao norte (às margens do rio Arraia, aldeia Sobradinho, povo Kaiabi), e também a oeste do rio Ronuro (onde se concentram várias aldeias do povo Ikpeng). Os Kuikuro, do Alto Xingu, estão construindo sua própria UAPI e uma casa própria para funcionar como isolamento.
Todos os 10 polos têm internet (em dois deles ela será reforçada), para que também possam fazer reuniões e tirar dúvidas via telemedicina com a equipe da Unifesp, em São Paulo. Ali também serão feitos os testes para Covid-19. O Dsei já disponibilizou 380 testes e a Unifesp outros 500. E o Instituto Socioambiental está comprando concentradores de oxigênio para atender essas unidades.
Paulo Junqueira, coordenador adjunto do Programa Xingu, observa que a importância dessas unidades de atendimento é principalmente a de manter os índios dentro da Terra Indígena. “As cidades no entorno não estão estruturadas para atender os índios, e o melhor é que eles sejam atendidos lá dentro, tomando cuidado para que não exponham os outros. ”
O Parque Indígena do Xingu, criado em 1961, foi a primeira grande terra indígena reconhecida do Brasil. É considerado um patrimônio nacional, referência de diversidade cultural e ambiental. Tem área de 27.975 km², abriga 16 povos e tem população estimada em 8 mil índios que vivem em 109 aldeias. Os xinguanos são considerados proprietários de um acervo milenar de conhecimentos sobre a natureza.
No Alto Xingu, por onde a pandemia entrou no território, os grupos, apesar de suas singularidades, têm cultura própria e partilham de ritos comuns, como o Kuarup, a grande cerimônia de despedida dos mortos. É dos maiores e mais importantes rituais dos alto-xinguanos, que costuma reunir centenas de convidados de diferentes aldeias.
E aí surgiu uma outra grande preocupação nesses tempos de pandemia. O Kuarup, geralmente realizado nos meses de junho e julho – época da seca, quando as águas dos rios estão mais claras e os peixes abundantes para alimentar os muitos convidados. Época também de retirar a polpa do pequi que foi armazenada (literalmente, enterrada) desde outubro do ano anterior em grandes cestos às margens das lagoas e rios. Já ficou azeda e fermentada o suficiente para agradar a festa.
Ganhou força, então, uma proposta para adiar os Kuarup, o grande encontro, o choro aos mortos, e outras ritos típicos dessa época, mas a ideia ainda encontrava resistência em alguns grupos. Em circular do dia 06 de junho, o presidente da Atix, Ianukulá Kaiabí, fez mais um apelo pelo aos caciques e lideranças do Alto Xingu.
“Diante dessa grave situação consulto os caciques do Alto Xingu sobre a realização das festas e principalmente dos rituais do Kuarup. A Atix respeita muito a cultura de todos os povos, mas estamos muito preocupados de que durante as festas e durante o ritual dos Kuarup a doença pode espalhar para outras aldeias causando uma situação descontrolável.”
Na noite de quarta, Ianukulá Kaiabí disse que três povos já tinham decidido pelo adiamento: Kuikuro, Yawalapití e Kamaiurá. Além disso, os Kalapalo estudam adiar conforme o cenário, enquanto outros três povos já informaram que vão restringir convidados.
"O ritual Kuarup é de grande importância para os povos do Alto Xingu, mas no momento entendemos que cuidar da saúde de nossas aldeias e evitar que o coronavírus se espalhe é assunto de extrema urgência" - Ianukulá Kaiabí
Para a antropóloga Carmen Junqueira, que trabalha há mais de quatro décadas com os alto-xinguanos, adiar ritos como o Kuarup não significará prejuízos aos grupos. “Há mortos que são homenageados dois anos depois do falecimento.”
O Kuarup costuma ocorrer um ano após a morte. Mas a história registra vários Kuarup realizados até dois anos após a morte. Antigamente apenas grandes líderes, como caciques e pajés, eram homenageados. Atualmente, líderes e famílias que tenham condições de propiciar uma festa tão grande – é preciso garantir bom estoque de mandioca, além do pequi e do peixe para alimentar os convidados –, também podem ter seu Kuarup.
A antropóloga lembra que as casas coletivas, típicas do Alto Xingu, as redes próximas para dormir, aumentam a possibilidade contágio. Caso decidam seguir com o rito, é necessário fazer adaptações, limitar o número de convidados e fazer distanciamento entre eles. “Ou faz distanciamentos, ou sobrará enterros para os que forem à festa. E isso precisa ser explicado, se adoecer pode ir pra rede e morrer”.
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